MITOS E VERDADES SOBRE O TRANSTORNO POR USO DE SUBSTÂNCIAS (TUS) - RÁDIO VOZ DA VERDADE

Neste artigo serão discutidas as várias vertentes sobre o transtorno por uso de substâncias (TUS), anteriormente conhecido como dependência química. Para melhor entendimento desse tema é preciso fazer um adendo sobre a conceituação de doença, transtorno e síndrome.
Primeiramente, a doença trata-se de entidades nosológicas que possuem mecanismos fisiológicos e psicológicos característicos, tendo um processo de começo, meio e fim, com tratamento e remissão bem definidos. É um evento corporal identificado com probabilidades de causas e meta de uma salutar cura, quando há a possibilidade no processo.
Sobre a síndrome conceitua-se como acumulação, um agrupamento de relativos e estáveis sinais e sintomas. Requer uma modificação na possível causa, pois trata-se de uma agregação conceitual sem possibilidades de cura.
Já o transtorno é caracterizado como perturbações, disfunções ou distúrbios cujas causas não são explícitas e nem são conhecidos seus mecanismos. Objetos de muitas pesquisas, os transtornos são responsáveis por comportamentos que quebram o “status quo” das normas sociais e morais. Devido a esse desvio de comportamento, as pessoas portadoras desses transtornos são consideradas desviantes, e ainda estigmatizadas como “anormais”. Maia e Avelar (2013) citando Canguilhem (1943) sintetizam que:
“…o transtorno é visto como decorrente da conjunção de variados fatores, sociais e familiares, constituindo-se de maneira contextualizada. Para Canguilhem (1943), não é possível conceber a existência de um transtorno “em si”, pois todo e qualquer estado patológico se dá em uma relação.”
(MAIA e AVELAR, 2013)
Considerando as diferenciações acima, têm-se que em estudos passados muito considerou-se o transtorno por uso de substâncias como uma doença. Ideia errônea porque as causas do TUS são multifacetadas além de multifatoriais. Sendo necessário frisar que nesse transtorno não há uma clara definição de entidades nosológicas e nem respostas mais previsíveis no processo de tratamento. Além de não possuir um tratamento padrão e claro com uma salutar remissão do processo através de um sistema de começo, meio e fim. Segundo , o tratamento do TUS é singular a cada paciente, pois em alguns casos uma busca por uma redução de danos pode ser a decisão mais plausível.
Também é crucial, pensar-se na perspectiva de uma esperança de “cura”, pois em transtornos as funções psíquicas sofrem alterações e sabe-se que essas funções compõem o ser em sua totalidade de funcionamento interno e em sua forma de relacionar-se com o mundo. Por isso, para o TUS e outros transtornos é um mito pensar em padronização de comportamento do que é esperado pela sociedade. Maia e Avelar (2013) consideram o pensamento de Coelho e Almeida Filho (1999) sobre o estabelecimento de consonâncias entre as falas de profissionais sobre o transtorno mental e considerações do filósofo Canguilhem sobre normal e anormal, considerando-se “variações ou “oscilações” de normas, já que ser saudável normal “…equivaleria a ser capaz de instituir normas diferentes daquelas que regiam a dinâmica de adoecimento.” (MAIA e AVELAR, 2013).
Na verdade, segundo recentes estudos, muitas vezes essa adesão a um status quo da concepção de normalidade que não parte do funcionamento psíquico do paciente, pode deixá-lo sem uma auto identificação e em um processo de individuação interrompido. Muitas vezes provocando uma quebra interna e uma cisão de sua realidade, cristalizando valores e crenças com concepções de desvalor, incapacidade e desamor por si mesmo, acarretando o próprio TUS e outros transtornos. Segundo Carnaúba et al (2017) citando Nietzsche e Foucault pontuam que:
“Nietzsche (2009) critica a homogeneidade que a normalização produz, e diz que o homem normal é doente, pois, para ele, onde se impõe a domesticação do homem, se expressa a realidade da condição doentia do homem domesticado. Esta domesticação do homem, a qual Nietzsche (2009) se refere, foi discutida também por Foucault (1987), quando o filósofo traz a reflexão de que o corpo do homem é disciplinado para se tornar dócil e submisso.”
(CARNAÚBA et al, 2017 p. 258)
O paciente com TUS precisa conhecer seu processo interno, para entender seu funcionamento em um processo de autoconhecimento e autopercepção. O paciente com transtornos precisa ressignificar sua visão de normalidade assim como seus familiares e redes de amigos, pois não existe “uma cura” a ser esperada, e sim uma assimilação e aceitação da singularidade de seu processamento. Terá que conviver, por exemplo com sua compulsão e ansiedade, inclinar-se em um processo de adaptação no sistema de recompensa que move-se para prazeres em alta demanda.Assim, Saraceno (2001) pontua que intervenções em processos terapêuticos direcionados ao alívio da sobrecarga sobre a família, conseguido através da interação entre família e paciente, são benéficas para a reabilitação e reintegração do paciente em seu convívio social.
Na verdade, quando há a compreensão de seu esquema funcional, o paciente consegue identificar seus gatilhos motivadores da “fissura” ou craving, desenvolver suas habilidades sociais e identificar suas potencialidades a fim de aprimorar sua autonomia e autoestima. Quando o paciente ressignifica o seu transtorno entra em um processo de psicoeducação e identificação de compulsão e impulsividade, desenvolvendo prevenção à recaída e pensamentos de aceitação e autoamor.
Com essa ressignificação de seu processo interno, o paciente com TUS, vive e encontra-se em si mesmo, reconstruindo esperanças perdidas, pois há a conscientização que é o responsável pelos mecanismos de alívio de fissura com técnicas pessoais tranquilizantes como meditação, oração da serenidade, atividades físicas, terapias ocupacionais, artes em geral, manejo com terra entre outras. Nos casos mais graves também há de se pensar na procura e acionamento da rede, pois os setores de emergência pelos portadores possibilitará uma oportunidade para a conscientização do paciente quanto ao uso de substâncias, também uma reflexão sobre seus comportamentos de risco e consequências médicas e psicossociais do uso (AMARAL et al, 2010). Será uma identificação do próprio paciente de suas necessidades e prazeres. O paciente não precisa “curar-se”, e sim promover a remissão de comportamentos de risco a si e ao outro em processos autodestrutivos, aprendendo a ser ele mesmo com ele mesmo sem uma auto sabotagem, apesar de estar em um ambiente tóxico e facilitador do consumo.
Ser feliz com todas suas fraquezas e limitações, desde que não esteja em um comportamento de risco para si e para o outro, será o prazer encontrado pelo paciente em seu projeto de existência, mesmo que conviva com todos os fatores predisponentes e preponderantes na sua adicção. Pois, a compulsão, impulsividade, ansiedade e busca de prazer em seu sistema compensatório serão contínuas em seu dia a dia, contudo poderão ser amenizadas ao longo do caminhar de seus dias, mês a mês e ano a ano. Já que a “normalidade” é um processo único, pessoal e singular que oportuniza sermos quem nós somos e podemos ser.
Referências Bibliográficas:
AMARAL, Ricardo Abrantes do; MALBERGIER, André; ANDRADE, Arthur Guerra de. Manejo do paciente com transtornos relacionados ao uso de substância psicoativa na emergência psiquiátrica. Rev. Bras. Psiquiatr. São Paulo , v. 32, supl. 2, p. S104-S111, Oct. 2010 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-44462010000600007&lng=en&nrm=iso>. access on 23 May 2021. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-44462010000600007.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária,1943.
CARNAÚBA, Raquel Arruda; PELIZZARI, Cláudia Camargo Arthou Sant´anna; SILVA JÚNIOR, Jorge Ubiratan de Almeida. Normalidade x anormalidade: a relatividade dos termos. Ces Revista. Juiz de fora v. 31, n. 2 (2017) issn 1983-162. Disponível em: https://seer.cesjf.br/index.php/cesRevista/article/view/1282 acesso em 23 maio 2021.
MAIA, Camila Carlos; AVELLAR, Luziane Zacché. Concepções de saúde e doença mental para profissionais de um CAPSi. Psicol. estud., Maringá , v. 18, n. 4, p. 725-735, Dec. 2013 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722013000400014&lng=en&nrm=iso>. access on 22 May 2021. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722013000400014.
SARACENO, B. Libertando identidades: da reabilitação à cidadania possível. Rio de Janeiro: Te Corá, 2001
SIQUEIRA, A. R. C. Psicopatologias. Curitiba: Uninter, 2019.
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